segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

1 – Aprendizagem e transferência lingüística em Língua Estrangeira (LE)

Para tratar da questão da transferência, um dos objetos centrais do nosso estudo, é importante começar discutindo, no marco teórico do processo de ensino-aprendizagem de LE, os conceitos aquisição e aprendizagem. Segundo Akerberg (2006), o campo do ensino-aprendizagem de língua estrangeira (LE) ou segunda língua (L2) é um campo movediço e bastante dinâmico no que diz respeito às posturas conceituais: e isso tanto no que se refere à concepção mesma da linguagem quanto às suas conseqüências didáticas. Um breve histórico das teorias de aprendizagem mostraria como as teorias e os métodos surgem, se modificam e/ou até desaparecem com muita rapidez, de acordo com a teoria lingüística vigente.
A fim de ilustrar metaforicamente a oposição histórica da aquisição ou aprendizagem de línguas estrangeiras, Akerberg (2006) utiliza a dicotomia da lógica do mercado ou feira livre versus a do claustro. Historicamente, o termo aquisição estaria relacionado à aquisição de línguas no mercado, ou seja, na feira, na rua, pelo contato direto entre os falantes em plenas trocas comerciais, e tem como pressuposto uma instrução intuitiva implícita. Trata-se de uma instrução baseada na exposição a insumos lingüísticos e a interações que não foram programadas com finalidades didáticas, ou seja, a exposição e a interação se dão num marco de contatos lingüísticos espontâneos. Já, como diz Akerberg, o termo aprendizagem implicaria um processo historicamente mais relacionado ao claustro do que ao mercado ou feira livre, ou seja, a um estudo em lugar fechado que tem como pressuposto uma instrução declarativa explícita. Trata-se de uma instrução baseada na exposição a insumos ou materiais lingüísticos e interações programadas ou provocadas, ou seja, desenhadas com finalidades didáticas.
Ainda que aquisição e aprendizagem, freqüentemente, se usem indistintamente, esses dois termos têm significados diferentes em sua origem teórica dentro dos estudos de ensino e aquisição. Segundo Thatcher (2000), o vocábulo aquisição se reserva à língua materna (LM), enquanto que todas as demais línguas, ou seja, as línguas estrangeiras (LE), se aprendem, não se adquirem.Entretanto, essa repartição língua materna-aquisição e língua estrangeira-aprendizagem não é unanimemente reconhecida como tal, dentro da Lingüística Aplicada.
Para Krashen (1981), o termo aquisição não se refere necessariamente à aquisição da LM, mas às condições de imersão e contato lingüístico. Se o sujeito é exposto à LE por contato direto, ou seja, se é exposto à LE como a criança é exposta à LM, e adquire a LE de forma assistemática, o termo usado neste caso é aquisição da LE e não aprendizagem, ainda que seja LE e não LM. Portanto, para Krashen, o termo aprendizagem se aplica ao estudo formal da LE, geralmente em sala de aula, com professor, explicações gramaticais, exercícios de conhecimento explícito da língua, simulação de situações para fomentar o diálogo em LE, ou seja, a aprendizagem, ao contrário da aquisição, implica um processo de exposição e exercício da LE planejado e sistemático.
Ainda no marco da Lingüística Aplicada, citando Griffin (2005), o termo “segunda língua (L2)” é usado quando uma língua é aprendida depois de uma primeira e enquanto o indivíduo mora no país onde se emprega esta língua como língua de comunicação, já o termo “língua estrangeira (LE)” se refere também a uma língua que se aprende depois de ter uma primeira formada, no entanto em outras condições de aprendizagem. A LE é a língua que se aprende (geralmente com construção formal) em um país no qual não se usa esta língua como língua de comunicação. Considerando principalmente a perspectiva da interação no processo de formação de professores de E/LE no Brasil, nós seguimos a linha da Lingüística Aplicada e optamos por referir-nos à aprendizagem de LE em vez de L2. Sendo assim, nesta pesquisa, o contexto de aprendizagem, ou o processo de instrução explícito pelo qual passaram os sujeitos cariocas que participaram de nosso experimento passa a ser o critério classificatório da amostra de população que pretendemos estudar.
Desde a perspectiva da LA, ou seja desde a perspectiva sócio-interacionista, Griffin assinala ainda que a L2 costuma ser aprendida por motivos mais extrínsecos ou instrumentais. Por exemplo, se o indivíduo se encontra num país onde se utiliza esta língua, precisa aprendê-la para estudar, trabalhar, enfim, se comunicar e sobreviver no país. Já a LE costuma ser aprendida mais por razões intrínsecas, de afinidade ou escolha (com objetivos tais como turismo, estudo voluntário, resultado da política lingüística nacional ou regional...). Os sujeitos cariocas que analisamos optaram por estudar voluntariamente a língua espanhola, o que reitera nossa escolha pelo termo LE e não L2, considerando essa distinção da LA. [1]
Seguindo esta linha conceitual, consideramos em nosso trabalho como sendo aprendizes de LE, todos aqueles que receberam o input da LE a partir de um contexto escolar/institucional, mesmo que esse processo escolar já tenha sido encerrado e sejam, atualmente, os sujeitos analisados em questão, professores de LE. Para a constituição do nosso corpus, consideramos o grupo de aprendizes (seja qual for o seu nível lingüístico e, no nosso caso, mesmo que o processo de ensino esteja encerrado) em oposição ao grupo de falantes nativos de LM. A nossa hipótese é que o sistema fonológico da LM e seus processos e restrições têm uma influência na aprendizagem do sistema fonológico da LE, especificamente no que diz respeito aos contornos melódicos, sendo essas influências as que trataremos como transferências prosódicas.
A oposição destes dois termos (LE x L2), é uma oposição teórica, os teóricos da Lingüística Aplicada (LA) diferem dos teóricos da Aquisição de Segundas Línguas (ASL) quanto a como chamar essa nova língua, se LE ou L2.. Tem sido um consenso na LA chamá-la de LE quando nos referimos ao processo ligado ao contexto institucional, seguindo esta linha seria uma incongruência tratar da "aquisição de LE". Entretanto, na ASL praticamente se usa o termo L2, assim para a ASL, que segue a perspectiva da Gramática Universal, tudo pode ser chamado de L2 porque não interessam os meios pelos quais dado insumo lingüístico chega ao aprendiz, mas sim, o que acontece na mente (ou seja, da perspectiva da cognição) desse indivíduo que recebeu aquele estímulo. A ASL tem o foco voltado para dentro, por dizê-lo assim, para aspectos psicológicos desse processo, enquanto que a LA tem o foco voltado para fora, para o processo em si de ensino-aprendizagem, para o tipo de interação e de insumo do processo sócio-interacionista e não para o processamento cognitivo em si, mais mentalista.
Língua Estrangeira (LE) em oposição à Língua Materna (LM), aprendizes versus nativos, é o recorte metodológico que aplicamos à população que nos propomos estudar nesta tese: aprendizes de Espanhol/LE, nativos de Português do Brasil/LM e nativos de Espanhol/LM. Nosso propósito é verificar a transferência prosódica de padrões rítmicos e melódicos do PB/LM no Espanhol/LE. Do ponto de vista teórico a influência da LM sobre a LE pode ser abordada a partir de três perspectivas teóricas bem distintas, no que diz respeito aos estudos da linguagem.
Segundo Griffin (2005), a transferência lingüística pode ser tratada a partir de três perspectivas muito diferentes: o behaviorismo ou condutivismo; o nativismo, mentalismo ou gerativismo, e ; o funcionalismo ou interacionismo.
A linha behaviorista , a partir dos experimentos de Skinner publicados na década de 50, propõe que os seres humanos nascem sem aparentes conhecimentos e que tudo o que aprendem o fazem através de uma exposição direta ao que existe em seu entorno. Com repetidas exposições ao que há no entorno, respondemos ora os imitando ora os associando com outras informações. Através destas imitações provocamos retroalimentação positiva ou negativa que a sua vez reforça as imitações, convertendo-as em hábitos. Com relação à LE, os behavioristas consideram que a LM consiste numa série de informação já formada pelo processo e que constitui uma cadeia de hábitos de comportamento estabelecidos. Ao se aprender a LE, o processo é o mesmo, mas ao existir já os hábitos da LM, se trata de ter que “re-aprender”, ou reforçar novos hábitos (esta vez, de LE) através da prática repetitiva. Esta teoria behaviorista foi a base de estudos nos quais se observam e analisam “erros” que os aprendizes de LE cometem que ao parecer procedem de uma transferência negativa (interferência) de conhecimentos de LM. Em múltiplas tentativas de comparar as estruturas das línguas por meio do método conhecido como “análise contrastiva”, a conclusão a que se chega é que os elementos que se parecem entre a LM e a LE, não são fonte de “erros”, porque se trata dos mesmos hábitos, no entanto os elementos diferentes produzem “erros” porque se trata de hábitos diferentes. A solução para não se cometer “erros” seria repetir os novos hábitos tantas vezes quantas forem necessárias para poder eliminar os velhos hábitos. A partir dessa perspectiva, há a aceitação total de transferência da LM como o fator mais importante que atua no processo.
No entanto, para Chomsky, nem todos os “erros” se podem explicar por comparações entre os sistemas lingüísticos. Para ele, alguns “erros” parecem “se gerar” dentro do mesmo indivíduo. Sendo assim, Chomsky cria um dispositivo para aprender línguas, uma estrutura mental que parece funcionar independentemente do que observa o indivíduo e que está composto por uma rede de regras sintáticas que só precisam entrar em contato com a experiência direta para poder se ativar. Essa é a perspectiva do nativismo, mentalismo ou gerativismo. Nesta perspectiva cognitiva, o papel da LM no processamento de uma L2 e na formulação de regras é o de preencher os vazios do código novo ainda não disponível com regras e sistematizações do código já disponível. Essa formulação de regras seria uma processo dinâmico, sendo que na maioria dos modelos gerativistas atuais, a LM tem um papel fundamental pois são suas propriedades as que propiciam ao aprendiz alguma capacidade de acessar e processar o insumo da língua nova.
Os behavioristas e os gerativistas baseiam suas idéias na percepção lingüística, ou como um indivíduo entende e usa as estruturas morfossintáticas ou referências léxicas ou conceitos semânticos; geralmente se referem à aprendizagem de fragmentos mínimos de língua; morfemas, palavras, no máximo frases.
Já um terceiro grupo de teóricos, os interacionistas observam que a aprendizagem de LE não depende exclusivamente do sistema lingüístico, mas sim que é a natureza da comunicação o que condiciona o processo. É por isso que se começa a estudar a língua em blocos maiores, chamados de discurso. A idéia é que a aprendizagem procede de uma negociação que surge da comunicação entre interlocutores e que esta comunicação produz discurso de acordo com o significado que cada um lhe dá. É a interação entre os interlocutores o que faz com que a informação do entorno interaja com o dispositivo de aprender línguas, convertendo-se assim na língua que o aprendiz pode chegar a compreender e a assimilar em sua estrutura cognitiva para ser recuperada e usada em outra ocasião quando precise. Nesta perspectiva há uma redefinição do papel da transferência da LM, que postula uma interpretação relativizada do fenômeno, apontando-o como um dos fatores, não mais o único, na questão da aprendizagem de LE.
De acordo com os estudos sobre ensino-aprendizagem de LE, se pode afirmar que a LM tem um papel ativo sim na aprendizagem da LE, seja:
1- como conhecimento pré-existente ao que se acede estrategicamente na comunicação,
2- como fonte de uma interferência, também estratégica integrada nos mesmos processos de construção criativa da língua,
3- como mediadora entre a LE e a gramática universal, ou
4- integrada no marco dos universais lingüísticos.
Em todos esses casos se pode falar de um papel ativo e positivo da LM, ainda que alguns autores assinalem a interferência negativa que poderia vir a atrasar e fossilizar a aprendizagem.
Gass et Selinker (1983), apud González (1994), julgam que é realmente possível e não incompatível ver a aprendizagem de LE como um processo, ao mesmo tempo, de testagem de hipóteses, no qual os estudantes criam porções de conhecimento a partir dos dados de LE que lhes são acessíveis, e de utilização do conhecimento da LM, bem como de outras já aprendidas, na criação de língua do aprendiz. Outros mostram que faz parte desse conhecimento prévio tudo aquilo que já está assimilado da língua que se está adquirindo.
O principiante usa como estratégia comunicativa o “empréstimo” de sua língua materna. Esta transferência, ou interseção, como a renomeia Corder (1967), é uma manifestação de um processo psicológico geral que se serve dos conhecimentos existentes para facilitar a nova aprendizagem como ressaltam McLaughlin (1978) e Taylor (1975).
Segundo McLaughin (1987), se considera a transferência como uma estratégia de comunicação que se emprega quando os conhecimentos de LE não são suficientes para elaborarem enunciados, ou, em outras palavras, se considera um processo psicolingüístico que serve de apoio para facilitar a aprendizagem da LE. O que um aprendiz faz é usar estratégias, mecanismos, táticas, planos, procedimentos.da LM na aprendizagem de línguas estrangeiras.
Hoje em dia, apresenta-se a transferência como uma estratégia comunicativa, na qual o “empréstimo” da LM propicia dinamismo e progressão da chamada Interlíngua, e ainda que esta estratégia seja uma das causas da aparição do “erro”, especialmente no eixo das línguas consideradas próximas como o português e o espanhol, esta estratégia é uma das causas possíveis, porém não a única. Essa transferência dos saberes da LM do aprendiz na aprendizagem de LE é um processo natural, conforme afirma Odlin, 1989.
O conceito de transferência esta presente, portanto, segundo Ortiz Alvarez, no que se assinala no campo da didática das línguas como as três teorias mais relevantes de ensino aprendizagem de LE: a análise contrastiva, a análise de erros e a hipótese da interlíngua.
Considerando o histórico das teorias de ensino-aprendizagem de LE, Ortíz Alvarez (2002) aponta essas três teorias como as mais relevantes:
(1) Análise contrastiva (AC), centrada na transferência da LM para LE;
(2) Análise de erros (AE), que também leva em conta os mecanismos intralingüísticos – sobregeneralização, simplificação, etc. – e
(3) a Hipótese da Interlíngua (IL), que concilia as duas teorias anteriores.
Nos primeiros estudos sobre ensino-aprendizagem de LE predomina a corrente da análise contrastiva de Weinreich (1953) e de Lado (1957) que defendem o uso de elementos de LM na LE, como causa de “erros” no uso da LE. No entanto, em 1967, Corder publica um importante artigo no qual destaca o valor dos “erros” (até então combatidos pelos defensores da análise contrastiva) para o aluno, para o professor e, especialmente, para o pesquisador. Surge a partir desse artigo a análise de erros (AE), que tem como base a hipótese chomskyana.
A terceira e última teoria relevante, segundo Ortiz Alvarez, surge em 1972, quando Selinker formula o termo “interlíngua” (IL) para designar a língua dos falantes não nativos. O termo Interlíngua (IL) se refere a um sistema lingüístico estruturado e organizado, próprio de uma etapa determinada na aprendizagem de uma LE; é um idioleto natural na LE, a versão particular e provisória que o aluno tem da LE, um sistema intermediário entre a língua nativa e a língua meta. Até chegar à língua alvo (LAL), o aluno transfere regras de sua LM à LAL e acaba criando uma IL. Na configuração da interlíngua intervêm, principalmente, os erros de aprendizagem (esporadicamente, também erros de ensino), as estratégias de aprendizagem, de comunicação, de sobregeneralização e a transferência de elementos da LM. No caso do termo transferência, postulam-se duas modalidades, a positiva e a negativa, sendo que esta última também recebe, nesta linha teórica o nome de interferência. A transferência é considerada positiva quando a influência exercida pela língua materna (LM) na língua estrangeira (LE) é considerada uma ajuda benéfica; já quando a influência exercida pela LM na LE leva o sujeito-aprendiz a cometer “erros” muitas vezes “graves” e que podem gerar malentendidos é considerada transferência negativa ou interferência.
Mas o que são erros e erros graves? Quem pode julgar ou avaliar as performances em LE e com base em quais critérios, sejam eles intuitivos ou de uso? Com base em que tipo de gramática se avaliam os erros, na das descrições gramaticais disponíveis, na gramática internalizada do falante ou na percepção dos usos no jogo da interação social, a partir de sua freqüência e combinação no discurso?
O conceito de Interlíngua, útil para contextos didáticos de ensino-aprendizagem de LE, tem sido bastante criticado a partir de diversas correntes lingüísticas pela concepção estanque da linguagem que pressupõe, estanque no sentido de tratar a língua como um objeto bem definido e com os contornos bem delimitados. A análise do discurso ou a fonologia articulatória por exemplo, correntes lingüísticas que procuram dar conta da dimensão psicanalítica da linguagem, ou de sua origem bio-mecânica e sócio histórica, rejeitam o conceito de Interlíngua.
Como uma língua não é um objeto definido, com contornos precisos e estáveis, para Atálla Pietroluongo (2001), o termo Interlíngua, que corresponde a um estágio intermediário (“provisório e passível de evolução”) de aprendizagem de uma dada língua é problemático. Tal visão denuncia o positivismo que leva a pensar o discurso do aprendiz como um desvio em relação à norma constituída por esses “objetos acabados” que seriam respectivamente a língua de origem e a língua alvo (LAL). A diversidade de interesses e objetivos de aprendizagem demonstra que o que existe são diferentes variedades de utilização de um objeto idealizado: a língua (Moirand, 1984).
Pensando a língua como aquilo que fornece as condições materiais sobre as quais os processos discursivos se desenrolam, aquilo que constitui a condição de possibilidade do discurso, o lugar onde se produzem efeitos de sentido (Pecheux, 1975), se chega à conclusão de que o discurso de um indivíduo é constituído por traços de sua formação ideológica. O discurso se ancora em práticas que não são unicamente do indivíduo, mas que este partilha com outros sujeitos do grupo a que pertence (Atálla Pietroluongo, 2001).
Essa relação influencia na escolha do indivíduo pelo estudo de determinada LE. Embora, a maioria dos indivíduos que optem por estudar uma língua estrangeira (LE), geralmente, tenham como objetivo principal ampliar seus horizontes profissionais, acabam por ampliar além desse horizonte, sua vida intelectual, acadêmica e pessoal, pois, ainda que, ao se deparar com uma LE, o sujeito crie uma realidade estereotipada, já que tece imagens sobre essa LE, que advêm de um mundo imaginário criado a partir de sua própria língua, de métodos de ensino de LE e de seus próprios professores, este cresce profissionalmente e pessoalmente, uma vez que o indivíduo acaba desconstruindo essa imagem estereotipada e aprende a não só descrever a nossa realidade convencional com sons novos e exóticos, mas aprende também a criar uma realidade nova.
Tal estereotipação ocorre, pois quando o sujeito aprende uma nova língua não se trata, como não o foi em língua materna (LM), de entrar virgem num terreno neutro, mas sim, de sofrer mais uma vez as coerções das malhas de uma outra rede significante, também necessariamente articulada pelo simbólico lugar da Lei, da Cultura, das Regras, das Prescrições. O sujeito conhece a inscrição simbólica em todos os rituais e cerimoniais sociais dos quais participa. Do nascimento à morte, o simbólico se codifica em sistema (Lacan, 1966).
Com essa nova aprendizagem o sujeito muda, se transforma, pois, segundo Revuz (2001), toda tentativa para aprender uma outra língua vem perturbar, questionar, modificar aquilo que está inscrito em nós com as palavras dessa primeira língua. Muito antes de ser objeto de conhecimento, a língua é o material fundador de nosso psiquismo e de nossa vida relacional.
Segundo Atálla Pietroluongo (2001), o exercício continuado de uma LE dará, pois, contornos novos à subjetividade do indivíduo, à sua relação com o dizer, com o seu ver, com o seu fazer. A língua materna (LM) deste indivíduo será sempre afetada pelo movimento dessa nova trama significante. Essa LE, que talvez jamais venha a ser inteiramente uma língua para este indivíduo, no sentido que o é sua LM, desestrutura o seu pensar, desorganiza sua sintaxe, reorganiza espaços, cria efeitos de sentidos novos, inusitados, insuspeitados no seu dizer o mundo. Falando outra língua, o indivíduo é em outro lugar, faz sentidos diversos do que faria se só conhecesse a sua. Começa a desconfiar que pode dizer diferente e que essa diferença dará novos contornos a esse estrangeiro de si.
No caso específico da prosódia esse processo passa pela construção de uma nova voz, de uma nova identidade vocal, calcada na reaprendizagem de gestos articulatórios, na manifestação da expressividade vocal e de estilos de fala.
Se a língua é um objeto idealizado, do ponto de vista material ou concreto só temos discurso. O delineamento preciso do que é língua é desmontado tanto :
a) pela perspectiva discursiva, segundo a qual ao falar uma nova língua, abre-se no indivíduo a possibilidade de um redimensionamento que coloca em questão a forma como foi, até então, em sua língua, colocando-o nas margens de seu próprio dizer, quanto
b) pela perspectiva sócio-histórica que coloca em questão a própria noção de língua, enquanto ideologicamente marcada pelos discursos que a instauram na sociedade (descrições gramaticais, referencias políticas e institucionais) dificilmente recortada enquanto objeto em si uma vez que a língua não tem uma dimensão material, física mas sim puramente discursiva e ideológica – língua é ideologia.
Uma vez deslocadas as fronteiras lingüística claras, tanto do ponto de vista do sujeito quanto da sociedade. concluímos que: se é difícil definir o que é língua, muito mais difícil seria para nós definir uma interlíngua. Por esta razão optamos pelo termo transferência para nosso trabalho, sem considerar a questão de interlíngua, nem questões de avaliação positiva ou negativa. Tratarmos a transferência fônica do ponto de vista da fonologia articulatória, enquanto conjunto de gestos vocais: rítmicos, e entonacionais, no caso da transferência prosódica, que fazem parte da gramática fônica da LM e da identidade vocal já adquirida e que, pela falta de exposição ou sistematização adequada, são transferidos durante a aprendizagem da LE (Albano, 2001).
Considerando que os usos privilegiados são os que criam efeitos de exemplar, o privilégio de um uso é, ao nosso ver, criado na Interação Social, sendo que os indicadores de uso, tais como freqüência e probabilidade são parte da gramática fônica, internalizada pelos falantes. Na nossa concepção lingüística, a emergência da linguagem não é vista com uma visão estática de desenvolvimento mas como um processo de oscilação: conexões entre unidades de informação que partem do aleatório e se estabilizam graças aos modelos da aprendizagem supervisionada, sendo que durante o processo as ativações dessas conexões oscilam (Albano, 2001). Nessa perspectiva conexionista, trata-se sempre de um processo dinâmico de idas e voltas e que não pode ser encerrado num paradigma estático de blocos lingüísticos estanques, tais como língua de origem e língua meta ou língua alvo.
Em suma, nosso objeto de estudo é a transferência prosódica de aprendizes de Espanhol/LE, falantes de Português do Brasil/LM, particularmente no que diz respeito a sua produção de enunciados assertivos e interrogativos totais, considerando, especificamente, o par lingüístico português-espanhol.




[1] Seguindo a linha da ASL ou da LA, vários trabalhos de pesquisa vêm sendo desenvolvidos nos Estados Unidos com o Português como L3 - Terceira Língua a partir de falantes nativos de inglês (L1) ou de espanhol (L1), com espanhol (l2) e inglês (L2), respectivamente (Koike e Gualda, 2008; Bacelar da Silva, 2008).

Um comentário:

Interlíngua, interferência e transferência disse...

A argumentaçao nao está fechada acho que esse primeiro texto ficou mais um esboço de idéias e fichamentos, mas por isso mesmo aceito comentários e sugestões...